Ano de lançamento: 2015
Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Michel Joelsas, Lourenço Mutarelli
Produtora: Sara Silveira
Diretora: Anna Muylaert
Empresa responsável: Filmes do Serro
País de origem: Brasil
“Que Horas Ela Volta?” é um filme brasileiro lançado em 2015 que se destaca como uma obra sensível e cortante sobre as relações de classe no Brasil. Dirigido por Anna Muylaert, o longa acompanha Val (Regina Casé), uma empregada doméstica pernambucana que trabalha há anos em uma casa de classe média alta em São Paulo, cuidando do filho dos patrões, Fabinho (Michel Joelsas), enquanto sua própria filha, Jéssica (Camila Márdila), foi deixada no Nordeste. A chegada de Jéssica à casa dos patrões, para prestar vestibular, desencadeia um confronto de gerações, valores e expectativas que expõe as sutis – e nem tão sutis – barreiras sociais que persistem no país.
O tema central da obra é a desigualdade social e a complexidade das relações entre patrões e empregados, filtradas pelo olhar da maternidade e da mobilidade social. Val representa uma geração conformada com a hierarquia tradicional, enquanto Jéssica simboliza um Brasil em mudança, onde os filhos de trabalhadores começam a questionar e romper com os papéis herdados. A piscina da casa, que Val nunca usa mas Jéssica invade sem cerimônia, torna-se uma metáfora poderosa para essa transgressão de limites, desafiando as normas implícitas de submissão que Val aceitou por décadas.
O resumo da trama é direto, mas rico em camadas. Val vive há mais de dez anos na casa de Bárbara (Karine Teles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), onde é tratada como “quase da família”, mas confinada a um quartinho nos fundos. Quando Jéssica chega, sua postura desinibida – dormindo no quarto de hóspedes, comendo na sala de jantar – desestabiliza a dinâmica da casa. O conflito cresce à medida que Val tenta enquadrar a filha nas regras que ela mesma segue, enquanto os patrões oscilam entre hospitalidade superficial e desconforto crescente. O desfecho, com Val tomando uma decisão libertadora, é um sopro de esperança em meio à crítica social.
A análise do filme revela uma direção afiada de Muylaert, que usa o espaço doméstico como um microcosmo do Brasil. A câmera de Bárbara Alvarez enquadra Val frequentemente na cozinha ou à margem dos ambientes, reforçando sua invisibilidade social, enquanto os diálogos improvisados – muitos sugeridos por Regina Casé – dão autenticidade aos personagens. A atuação de Casé é um ponto alto, equilibrando humor e melancolia em uma Val que carrega o peso de uma vida de sacrifícios. Camila Márdila, por sua vez, brilha como Jéssica, trazendo uma energia desafiadora que sacode as fundações da narrativa.
O contexto de produção reflete um momento de transição no Brasil. Lançado em 2015, o filme surge em um período de debates sobre a PEC das Domésticas (2013), que garantiu direitos trabalhistas às empregadas, e de ascensão social impulsionada por políticas públicas. Muylaert, que escreveu o roteiro ao longo de 20 anos, inspirou-se em sua própria experiência com uma babá nordestina, transformando uma história pessoal em um comentário universal sobre classe, gênero e poder. A escolha de São Paulo como cenário, com suas mansões e contrastes, amplifica essa crítica.
Exibido no Festival de Sundance 2015, Regina Casé e Camila Márdila ganharam o Prêmio Especial do Júri por suas atuações, enquanto em Berlim o longa levou o Prêmio do Público. No Brasil, foi aclamado com 95% de aprovação no Rotten Tomatoes e escolhido para representar o país no Oscar de 2016, embora não tenha chegado à lista final. Uma nota interessante é que a cena icônica da bandeja de café, um dos momentos mais tensos e hilários, foi totalmente improvisada por Casé, mostrando seu domínio cômico-dramático.
A trilha sonora, composta por Fábio Trummer e Vitor Araújo, é discreta mas eficaz, pontuando os momentos de emoção sem roubar a cena. O filme também se beneficia da fotografia de Alvarez, que usa cores mornas para contrastar a frieza das relações humanas na casa. A piscina, além de símbolo narrativo, foi um desafio logístico: a equipe teve de aquecê-la para as filmagens, já que as cenas foram rodadas em um inverno paulistano gelado. Esses detalhes técnicos reforçam a atenção de Muylaert aos aspectos visuais e emocionais da história.
“Que Horas Ela Volta?” é, em essência, um convite à reflexão sobre quem somos enquanto sociedade. Ele não oferece respostas fáceis, mas cutuca feridas abertas com uma mistura de ternura e acidez. Como crítico, vejo nele um marco do cinema brasileiro contemporâneo, capaz de emocionar e provocar sem cair em caricaturas ou moralismos. É um filme que fala do passado persistente e do futuro possível, deixando o espectador com a pergunta do título ecoando – e talvez com a vontade de, como Val, dar um mergulho na própria piscina da vida.
Comente!