Autor: Tom Zé
Ano de lançamento: 1968
Produtor: João Araújo
Editora: Rozenblit
Imagine um baiano desembarcando em São Paulo com uma mala cheia de acordes e um olhar de quem acabou de ver um disco voador estacionado na Avenida Paulista. Esse é o ponto de partida de Grande Liquidação, o álbum de estreia de Tom Zé, lançado em 1968 pela Rozenblit. Não é só um disco, é um manifesto tropicalista disfarçado de crônica urbana, um grito de quem tenta entender a selva de concreto enquanto mistura samba, psicodelia e uma pitada de deboche. Aqui, Tom Zé não apenas canta: ele disseca a metrópole com a precisão de um cirurgião e o humor de um palhaço de circo.
O tema central do disco é a relação ambígua entre o homem e a cidade grande, com São Paulo como musa e vilã. Tom Zé, recém-chegado da pacata Irará, na Bahia, encara a capital paulista como um caldeirão de contradições: progresso e caos, modernidade e miséria, samba e buzina. É um retrato sonoro de uma época em que o Brasil vivia sob a ditadura militar, mas também dançava ao som da Tropicália, movimento do qual Tom Zé foi um dos pilares. O álbum é uma “liquidação” simbólica: tudo está à venda, das boas maneiras ao amor de portão, em um mercado onde o absurdo é moeda corrente.
São 12 faixas que passeiam por histórias de camelôs, ladrões, paqueras interrompidas por buzinas e críticas mordazes ao consumismo. “São São Paulo”, a joia da coroa, abre o disco com uma declaração de amor e desespero à cidade. Já “Parque Industrial” cutuca a industrialização desenfreada com ironia afiada. Tudo isso embalado por arranjos que misturam guitarras psicodélicas, percussão nordestina e coros que parecem saídos de um delírio coletivo.
O contexto histórico é essencial para entender a obra. Lançado no mesmo ano de Tropicália ou Panis et Circensis, o disco reflete o espírito revolucionário e experimental de 1968. Enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil jogavam bombas poéticas na MPB, Tom Zé preferiu dinamitar as convenções com um sorriso torto. Sob a produção de João Araújo e com apoio de bandas como Os Versáteis e Os Brazões, o álbum nasceu em um estúdio paulistano, capturando o frenesi da cidade em fitas magnéticas. Era o auge da ditadura, mas também da criatividade sem rédeas.
Tom Zé, o autor, é um gênio excêntrico que transforma o trivial em arte. Nascido Antônio José Santana Martins em 1936, ele trocou a vida de comerciante em Irará por estudos musicais em Salvador e, depois, pela aventura em São Paulo. Antes de Grande Liquidação, já tinha vencido o 4º Festival de Música Popular Brasileira com “São São Paulo, Meu Amor”. Sua mente inquieta e sua recusa a fórmulas prontas fizeram dele o “tropicalista outsider”, um inventor de sons que nunca se encaixou nas prateleiras comerciais — para sorte nossa.
Sobre números, o disco tem 12 faixas, todas compostas por Tom Zé, exceto “Não Buzine Que Eu Estou Paquerando”, que recicla o “Rancho” de João de Barro e Alberto Ribeiro com um toque de irreverência. Não há dados de vendas da época (era 1968, ninguém contava streams), mas o relançamento em vinil de 180 gramas em 2019, pela Polysom, prova que o álbum resistiu ao teste do tempo. As principais referências a São Paulo aparecem em “São São Paulo” — um hino torto à “terra da garoa” — e em “Parque Industrial”, que debocha da fumaça das chaminés com um refrão irresistível.
“São São Paulo” é uma montanha-russa emocional: começa com um coral angelical e termina em um lamento sobre o “quarqué” da cidade. “Parque Industrial” é puro sarcasmo tropicalista, com sua crítica ao progresso que engole a alma. “Curso Intensivo de Boas Maneiras” ensina etiqueta com um sorriso malicioso, enquanto “Quero Sambar Meu Bem” prova que, mesmo no caos, Tom Zé não esquece o rebolado. Os arranjos, cortesia de Damiano Cozzella e Sandino Hohagen, são um circo de três pistas: barulhento, colorido e genial.
O disco quase ficou na gaveta por ser “diferente demais” para a época. Tom Zé conta que a inspiração veio das ruas de São Paulo e do filme São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, que ele assistiu boquiaberto. Outra pérola: a capa, com um Tom Zé de olhar desconfiado, foi feita pela Officina, um estúdio de design que capturou o espírito da “liquidação”. Meio século depois, o álbum segue atual — afinal, quem nunca se sentiu perdido entre buzinas e concreto? Grande Liquidação é Tom Zé rindo do caos enquanto nos convida a dançar sobre os escombros.
Faixas:
01. São São Paulo (Tom Zé)
02. Curso Intensivo de Boas Maneiras (Tom Zé)
03. Glória (Tom Zé)
04. Namorinho de Portão (Tom Zé)
05. Catecismo, Creme Dental e Eu (Tom Zé)
06. Camelô (Tom Zé)
07. Não Buzine Que Eu Estou Paquerando (João de Barro, Alberto Ribeiro, Tom Zé)
08. Profissão de Ladrão (Tom Zé)
09. Sem Entrada e Sem Mais Nada (Tom Zé)
10. Parque Industrial (Tom Zé)
11. Quero Sambar Meu Bem (Tom Zé)
12. Sabor de Burrice (Tom Zé)
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