Arte e Cultura

Cadê as Armas?: o grito Punk feminino que sacudiu São Paulo

Autor: Mercenárias
Ano de Lançamento: 1986
Produtor: Edgard Scandurra
Editora: Baratos Afins

Imagine São Paulo nos anos 80: concreto cinza, fumaça de escapamento, e um caldeirão cultural fervendo sob a sombra de uma ditadura militar que agonizava. Nesse cenário, as Mercenárias, um trio punk formado por Sandra Coutinho (baixo), Rosália Munhoz (vocal) e Ana Machado (guitarra), com Edgard Scandurra na bateria, soltaram Cadê as Armas?, um disco que é como um soco no estômago da caretice. Lançado em 1986 pela lendária Baratos Afins, o álbum é um marco do pós-punk brasileiro, misturando raiva, ironia e uma energia crua que ainda faz os alto-falantes tremerem. Com apenas 26 minutos, é curto, afiado e não pede licença pra incomodar.

O disco é puro suco da São Paulo oitentista. A cidade, epicentro da contracultura brasileira, era um ninho de bandas como Inocentes, Ratos de Porão e Cólera, todas cuspindo no sistema. As Mercenárias, porém, tinham um diferencial: eram mulheres num cenário dominado por marmanjos. Suas letras mordem o autoritarismo, o consumismo e até a Igreja, com uma acidez que lembra as inglesas The Slits e Siouxsie and the Banshees. Gravado com a produção de Scandurra (o gênio por trás do Ira!), o álbum captura o espírito de uma geração que queria gritar, mas também dançar — mesmo que fosse no meio do caos.

O tema central de Cadê as Armas? é a rebelião. Não é só política, mas existencial. As letras questionam tudo: do inimigo abstrato em “Inimigo” à hipocrisia religiosa em “Santa Igreja”. Há um senso de urgência, como se o mundo pudesse acabar amanhã (e, na cabeça de quem viveu os anos 80, talvez pudesse). São Paulo aparece como pano de fundo, não só nas referências explícitas, mas na vibe urbana e claustrofóbica. É o som de quem anda pelas ruas da Consolação, vendo outdoors e sentindo o peso de um país em transição. O punk delas não é só barulho; é um espelho da angústia e da esperança de uma juventude que queria mais.

As principais faixas são pérolas que merecem reverência. “Pânico”, que ganhou o único clipe da banda, é um hino de ansiedade urbana, com Rosália berrando “Eu não vou me calar!” enquanto a guitarra de Ana rasga como uma serra elétrica. “Polícia” é um dedo na cara das forças repressoras, com um riff que gruda na cabeça e uma letra que ecoa as tensões de São Paulo sob toque de recolher. “Me Perco” traz uma melancolia inesperada, quase poética, com Sandra no baixo desenhando linhas hipnóticas. E “Santa Igreja” é uma pedrada anticlerical, perfeita pra assustar a tia beata na missa de domingo. Cada música é um tiro, e juntas formam um arsenal sonoro.

São Paulo é mais que um cenário; é quase uma personagem. Em “Polícia”, a cidade pulsa com sirenes e paranoia, evocando as batidas policiais nas noites do centro. “Pânico” capta o ritmo frenético da metrópole, onde o trânsito e a multidão podem engolir qualquer um. A capa do disco, com uma estética DIY que remete a fanzines, parece gritar “Vila Madalena, aqui estamos!”. As Mercenárias eram filhas da Paulicéia, tocando em lugares como o Madame Satã e o Lira Paulistana, palcos que definiam a cena alternativa. Elas não só cantavam a cidade; elas eram a cidade.

Cadê as Armas? não foi um blockbuster — punk nunca é. Mas seu impacto foi gigante. Lançado em vinil pela Baratos Afins, vendeu modestamente na época, mas virou culto. Em 2016, a *Rolling Stone Brasil* o elegeu o 5º melhor álbum punk nacional, prova de que envelheceu como vinho (ou melhor, como cachaça boa). Com 10 faixas, todas abaixo de três minutos, o disco é um sprint, não uma maratona. E a participação de Scandurra, que além de produzir tocou bateria, deu um brilho técnico sem tirar a crueza punk.

O título Cadê as Armas? é uma provocação irônica, quase como se dissessem: “Armas? Só temos guitarras!”. “Pânico” foi gravada ao vivo no programa Fábrica do Som, da TV Cultura, com Scandurra na bateria, mostrando que as meninas não brincavam em serviço. Rosália saiu logo após o álbum, deixando Sandra como vocalista. O hiato da banda veio em 88, mas elas voltaram em 2006, provando que o punk nunca morre.

Cadê as Armas? é um documento vivo da São Paulo rebelde, um disco que não pede desculpas e ainda soa atual. As Mercenárias mostraram que dá pra ser feroz, feminino e genial ao mesmo tempo. Seja pela crítica afiada ou pela energia contagiante, o álbum é um convite pra botar o volume no talo e dançar como se o mundo estivesse acabando. E, cá entre nós, com esse som, até que o apocalipse parece divertido.

Faixas:

01. **Inimigo** – Sandra Coutinho
02. **Santa Igreja** – Rosália Munhoz
03. **Polícia** – Sandra Coutinho
04. **Pânico** – Rosália Munhoz
05. **Sucesso** – Ana Machado
06. **Amor Inimigo** – Sandra Coutinho
07. **Além Acima** – Rosália Munhoz
08. **Me Perco** – Sandra Coutinho
09. **Lembranças** – Ana Machado
10. **Mundo Moderno** – Rosália Munhoz