Arte e Cultura

Beleléu, Leléu, Eu: São Paulo no mapa da vanguarda com um soco de criatividade

Autor: Itamar Assumpção e Banda Isca de Polícia
Ano de Lançamento: 1980
Produtor: Wilson Souto Jr. (Gordo)
Editora: Lira Paulistana/Continental

Vamos falar de “Beleléu, Leléu, Eu”, o álbum de estreia de Itamar Assumpção com a Banda Isca de Polícia, que caiu como uma bomba – ou melhor, uma navalha afiada – na cena musical brasileira de 1980. Gravado sob o selo Lira Paulistana, esse disco é o pontapé inicial da chamada Vanguarda Paulistana, um movimento que misturou samba, funk, rock e uma boa dose de malandragem urbana. Itamar, um gênio inquieto e debochado, não só apresentou seu alter ego Beleléu, mas também provou que São Paulo podia ser mais do que concreto e trânsito: era um caldeirão sonoro fervilhante. Com apenas 2 mil cópias numeradas lançadas, o LP virou cult instantâneo, um tesouro para quem conseguia botar as mãos nele.

O tema central do álbum gira em torno de Beleléu, um anti-herói marginal que carrega o nome completo Benedito João dos Santos Silva Beleléu – vulgo Nego Dito, como ele mesmo brada no refrão da faixa homônima. É uma crônica da vida nas bordas da cidade, com letras que destilam ironia, inconformismo e uma pitada de humor negro. Itamar transforma o cotidiano paulistano em poesia bruta, falando de amores tortos, confusões e a luta por identidade num Brasil que ainda engatinhava pós-ditadura. A produção alternativa, bancada pelo selo Lira em parceria com os músicos, reflete a ousadia de quem não tinha grana, mas sobrava ideia – e isso transborda em cada faixa.

O disco conta a saga de Beleléu e sua trupe, a Isca de Polícia, um “bando perigosíssimo” que, na real, é só um grupo de músicos geniais zoando o establishment. Das 13 faixas, temos desde vinhetas curtinhas que parecem esquetes de rádio até canções mais densas que misturam groove e experimentação. O sucesso veio rápido: a crítica adorou, rendendo a Itamar o prêmio APCA de revelação masculina em 1981, e o povão curtiu “Fico Louco” na trilha da novela “Os Adolescentes”, da Band. Anos depois, a Rolling Stone Brasil o colocou entre os 100 maiores discos da música brasileira – nada mal pra um LP que nasceu quase na raça.

Em 1980, São Paulo vivia uma efervescência cultural underground, com o Teatro Lira Paulistana servindo de QG pra uma turma que queria chacoalhar a MPB careta da época. Itamar, nascido em Tietê (SP) em 1949 e radicado na capital, era o cara perfeito pra liderar essa revolução: negro, irreverente e com um pé na malandragem, ele rejeitava as gravadoras tradicionais e abraçava a liberdade de fazer do seu jeito. A Vanguarda Paulistana, com nomes como Premeditando o Breque e Rumo, encontrou em “Beleléu” seu manifesto sonoro, um grito de quem não se encaixava nas fórmulas prontas.

Itamar Assumpção era um poeta das ruas, um “black navalha” como diz a letra de “Luzia”. Antes do disco, já rodava a cena musical com sua postura contestadora – e, dizem as lendas, tomando uns “gerais” da polícia por aí, o que inspirou o nome Isca de Polícia. Morto em 2003, ele deixou um legado que vai além da música: é quase um estilo de vida, um jeito de encarar o mundo com sarcasmo e suingue. No “Beleléu”, ele toca guitarra, canta e lidera a banda, que inclui feras como Paulo Barnabé na bateria e Mari nos vocais. O encarte, com seu título de eleitor sobre uma navalha, é a cara dele: cidadão e marginal ao mesmo tempo.

Agora, vamos às músicas principais. “Nego Dito” é o hino do disco, com Itamar declamando “E o meu nome é/ Benedito João dos Santos Silva Beleléu/ Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé” num tom que mistura orgulho e provocação – o groove é irresistível, e a guitarra de Jean dá o toque final. “Fico Louco” traz um clima de embriaguez e loucura urbana, com vocais desconexos e uma vibe que grita São Paulo dos anos 80: caos, fumaça e paixão. Já “Nega Música” é puro charme, uma balada funky que flerta com o romantismo torto, enquanto “Baby” mergulha num funk espacial afro-brasileiro que faz o corpo mexer sem pedir licença. Todas elas carregam a cidade no DNA, das vielas escuras às noites de boemia.

São Paulo está por toda parte no disco, não só nas letras, mas no som. O trânsito caótico ecoa nas percussões nervosas de Paulo Barnabé, a vida dura das periferias aparece nas histórias de Beleléu, e até o cheiro de asfalto molhado parece sair das faixas. “Luzia”, por exemplo, é uma ode às mulheres da metrópole, com sua mistura de jazz e samba que poderia tocar em qualquer bar da Vila Madalena. Itamar não romantiza a cidade – ele a destrincha, mostrando suas feridas e sua energia bruta, como um cronista que prefere a guitarra ao caderno.

A ficha técnica vira vinheta na penúltima faixa, com Itamar apresentando o “bando” em tom teatral – um toque de gênio. O disco já foi relançado em LP pela Baratos Afins e em CD pela Atração Fonográfica, mas as cópias originais são relíquias disputadas a tapa. E sabia que a novela “Os Adolescentes” deu um empurrão pra “Fico Louco” estourar? Pois é, o underground de Itamar flertou com o mainstream e saiu rindo. “Beleléu, Leléu, Eu” é mais que um álbum: é um soco bem dado na caretice, com a cara de São Paulo e o coração de um Nego Dito que nunca se cala.

Faixas:
01. Vinheta I – (Compositor não creditado)
02. Fon Fin Fan Fin Fun – Itamar Assumpção
03. Fico Louco – Itamar Assumpção
04. Aranha – Itamar Assumpção
05. Se Eu Fiz Tudo – Itamar Assumpção
06. Vinheta II – (Compositor não creditado)
07. Vinheta Radiofônica – (Compositor não creditado)
08. Baby – Itamar Assumpção
09. Embalos – Itamar Assumpção
10. Nega Música – Itamar Assumpção
11. Beijo na Boca – Itamar Assumpção
12. Luzia – Itamar Assumpção
13. Nego Dito – Itamar Assumpção