Arte e Cultura

Mutantes: o segundo ato dos malucos de São Paulo

Autor: Os Mutantes
Ano de lançamento: 1969
Produtor: Manoel Barenbein
Editora: Polydor

Se o primeiro disco d’Os Mutantes foi uma nave espacial pousando na Tropicália, Mutantes, de 1969, é o momento em que o trio de São Paulo — Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias — decide pilotar a nave direto pro espaço sideral, com um sorriso debochado no rosto. Este segundo álbum, lançado pela Polydor, é um caldeirão psicodélico que mistura rock, moda de viola, experimentalismo e um humor que parece dizer: “Se a ditadura não gosta, problema é dela!”. Com arranjos de Rogério Duprat, o disco é um passo além do debut, mostrando uma banda mais madura, mas sem perder a essência de quem parece ter gravado tudo depois de um café da manhã regado a LSD e guaraná.

A Tropicália, movimento que os Mutantes ajudaram a moldar, já estava em declínio em 1969, com Caetano Veloso e Gilberto Gil exilados pela ditadura militar. Mas o trio não se intimidou: eles dobraram a aposta na experimentação, misturando gêneros como quem mistura suco de laranja com cachaça — pode parecer estranho, mas o resultado é uma delícia. O álbum é um manifesto de resistência cultural, usando o absurdo e a psicodelia para rir na cara do autoritarismo, enquanto explora temas como amor, alienação e a busca por um sentido em um mundo caótico.

São 11 faixas que vão do rockabilly psicodélico de “Dois Mil e Um” à melancolia bucólica de “Fuga Nº II”. “Dom Quixote” abre o disco com uma energia de quem está pronto pra enfrentar moinhos de vento, enquanto “Caminhante Noturno” fecha com uma grandiosidade que parece um passeio cósmico. Há espaço para o humor em “Rita Lee”, uma música que zoa a própria vocalista, e para o surrealismo em “Dia 36”, com seus sons de baixo que parecem saídos de um filme de ficção científica dos anos 50.

O contexto histórico é um elefante na sala — ou melhor, um tanque militar estacionado na Avenida Paulista. Em 1969, o Brasil vivia o auge da repressão com o AI-5, que cassou direitos e calou vozes. A Tropicália, que no ano anterior tinha explodido com o disco-manifesto Tropicália: ou Panis et Circencis, estava desmoronando, e Os Mutantes, que participaram desse movimento, agora navegavam sozinhos em águas turbulentas. Mesmo assim, eles mantiveram o espírito provocador, gravando um álbum que desafiava as convenções musicais e políticas da época, com a ajuda do maestro Rogério Duprat, que trouxe arranjos orquestrais dignos de um circo psicodélico.

Os Mutantes são o trio mais “mutante” que São Paulo já viu. Formada em 1966 por Arnaldo Baptista (baixo, teclados e vocais), Sérgio Dias (guitarra e vocais) e Rita Lee (vocais e percussão), a banda nasceu em uma família de artistas — o pai dos irmãos Baptista era poeta, a mãe pianista. Antes de se tornarem Os Mutantes, eles eram os Six Sided Rockers, e Rita cantava em um grupo só de meninas, as Teenage Singers. O nome “Mutantes” veio de última hora, sugerido por Ronnie Von antes de uma apresentação na TV Record, inspirado no livro O Império dos Mutantes, de Stefan Wul. Com instrumentos caseiros feitos pelo irmão Cláudio César Dias Baptista, como a Guitarra de Ouro, o trio criou um som que era puro caos organizado.

Mutantes tem 11 faixas, todas gravadas em 1969 e lançadas pela Polydor. Não há registros exatos de vendas da época — afinal, naquela era, o sucesso não se media por streams —, mas o disco foi relançado em 1999 e 2006, e hoje é um clássico cult, listado como o 44º melhor álbum brasileiro pela *Rolling Stone Brasil*. A música “Dois Mil e Um” foi eleita a 90ª maior canção brasileira pela mesma revista. Referências a São Paulo aparecem em “Hey Boy”, que debocha dos playboys da Rua Augusta, point famoso da cidade nos anos 60, com seus carrões e cabelos engomados — uma crítica afiada à juventude fútil da elite paulistana.

Analisando as faixas principais, “Dois Mil e Um” é uma explosão de rockabilly com moda de viola, uma mistura que só Os Mutantes poderiam fazer funcionar, com um toque de psicodelia que te faz imaginar um baile caipira em Marte. “Fuga Nº II” é uma balada etérea, com arranjos de cordas que parecem flutuar, enquanto “Caminhante Noturno” é uma viagem épica, com vocais que evocam um misticismo quase religioso. “Dia 36” é o momento mais experimental, com um baixo “wooh-whooh” criado por um pedal wah-wah invertido — uma invenção maluca do irmão Cláudio que deixa a música com cara de trilha sonora de OVNI.

Os Mutantes usaram efeitos caseiros, como o pedal wah-wah invertido em “Dia 36”, e até gravaram com a ajuda de uma mangueira de borracha e uma lata de achocolatado para distorcer a voz de Sérgio — um truque que depois virou o “Voice Box”. A banda gravou o álbum enquanto enfrentava a censura da ditadura, que já tinha exilado Gil e Veloso. Mesmo assim, eles conseguiram lançar um disco que é um tapa na cara do conservadorismo, provando que, em 1969, São Paulo era o epicentro da loucura criativa brasileira. Mutantes é um convite pra embarcar na nave do trio — só não esqueça de levar seu capacete espacial.

Faixas:
01. Dom Quixote (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
02. Não Vá Se Perder Por Aí (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
03. Dia 36 (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
04. Dois Mil e Um (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
05. Algo Mais (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
06. Fuga Nº II (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
07. Banho de Lua (F. Migliacci, B. de Filippi, versão de Fred Jorge)
08. Rita Lee (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
09. Mágica (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
10. Hey Boy (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)
11. Caminhante Noturno (Arnaldo Baptista, Rita Lee, Sérgio Dias)