Ano de lançamento: 2003
Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Wagner Moura, Rodrigo Santoro, Milton Gonçalves, Caio Blat
Produtor: Andréa Barata Ribeiro
Diretor: Hector Babenco
Empresa responsável: O2 Filmes
País de origem: Brasil
Um lugar onde o caos é rei, a humanidade é moeda de troca e as buzinas da cidade lá fora são só um eco distante. Carandiru, lançado em 2003, é um soco no estômago dirigido por Hector Babenco que nos joga dentro da Casa de Detenção de São Paulo, o maior presídio da América Latina até sua demolição em 2002. Baseado no livro Estação Carandiru de Drauzio Varella, o filme segue o médico (Luiz Carlos Vasconcelos) que, ao implementar um programa de prevenção à AIDS, acaba virando ouvinte das histórias de vida dos detentos. O que começa como um mosaico de relatos humanos termina no massacre de 1992, quando 111 presos foram mortos pela polícia. É um filme que não pede licença pra te chacoalhar.
O tema central de Carandiru é a dualidade entre a brutalidade e a humanidade. Babenco não romantiza os presos — muitos são assassinos, ladrões, viciados —, mas os humaniza ao dar voz às suas histórias. A prisão é um microcosmo da sociedade brasileira, com suas hierarquias, códigos de honra e contradições. A AIDS, o tráfico e a superlotação são pano de fundo para reflexões sobre abandono estatal e sobrevivência. O médico, uma figura quase messiânica, serve como ponte entre o espectador e esse universo, mas sem nunca julgar — ele apenas escuta, enquanto nós, do outro lado da tela, somos forçados a encarar o espelho torto do Brasil.
O filme abre com o doutor chegando ao presídio e logo mergulha nas vidas de personagens como Lady Di (Rodrigo Santoro), uma travesti que sonha com amor, e Zico (Wagner Moura), um viciado preso ao crack e à culpa. São histórias de crimes, vinganças, amores improváveis e até um casamento entre detentos. Tudo ruma para o clímax: a rebelião que termina em massacre, filmada com uma crueza que faz o coração apertar. É um recorte de vidas desperdiçadas, mas também de uma resistência teimosa à desumanização.
A análise do filme revela um Babenco no auge de sua verve realista. Ele mistura humor, melodrama e violência com uma naturalidade desconcertante, apoiado por um elenco afiado — Wagner Moura e Rodrigo Santoro brilham em papéis ainda crus, pré-fama internacional. A direção opta por um tom quase documental, filmado no próprio Carandiru antes da implosão, o que dá uma autenticidade sufocante às cenas. A trilha sonora de André Abujamra, com seus tons quentes e caóticos, embala o ritmo frenético da narrativa. É um filme que não explica tudo, mas faz você sentir o peso de cada silêncio.
Lançado em 2003, Carandiru reflete um Brasil pós-ditadura ainda lidando com desigualdades e um sistema carcerário falido. O massacre de 1992, que chocou o mundo, é o ponto de virada do filme e da realidade: um símbolo da violência estatal impune. Babenco, argentino radicado no Brasil, já tinha mostrado seu olhar cortante em Pixote (1981), mas aqui ele vai além, misturando o pessoal — ele foi paciente de Drauzio Varella na vida real — com o político. O resultado é um grito contra o esquecimento.
O filme foi o último uso do presídio antes de virar pó em 2002. O rapper Sabotage, que faz o detento Fuinha, foi assassinado meses antes da estreia, tornando sua participação um epitáfio involuntário. Babenco faz um cameo como advogado, um toque de humor em meio ao caos. Outro detalhe: o orçamento robusto, bancado pela O2 Filmes, permitiu uma superprodução rara no cinema nacional, que levou 4,6 milhões de brasileiros aos cinemas — um blockbuster com alma de manifesto.
A força de Carandiru está em não oferecer respostas fáceis. É um filme que humaniza sem absolver, que critica sem panfletar. A sequência final do massacre, com sangue escorrendo pelas escadas, é um murro visual que ecoa até hoje, lembrando que o Carandiru pode ter sido demolido, mas seus fantasmas ainda rondam o Brasil. Para quem gosta de cinema que provoca, incomoda e fica na cabeça, é um prato cheio — ou melhor, uma cela lotada de emoções.
Carandiru é mais que um filme: é um documento vivo de um país que teima em ignorar suas feridas. Babenco, com seu olhar estrangeiro e coração brasileiro, nos entrega uma obra-prima que equilibra ternura e brutalidade. Assista, reflita, e, se puder, chore — porque, como já dizia Oscar Wilde sobre prisões, um dia sem lágrimas é um dia de coração endurecido. E Carandiru não deixa pedra sobre pedra no seu peito.
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