Arte e Cultura

Anarquistas, Graças a Deus: uma janela para a São Paulo dos imigrantes

Autora: Zélia Gattai
Ano de lançamento: 1979
Editora: Companhia das Letras (edição de 2009; original pela Record)

“Anarquistas, Graças a Deus” é um livro encantador que marca a estreia literária de Zélia Gattai, lançado em 1979. Escrito em um tom memorialístico, a obra mergulha nas lembranças da autora sobre sua infância e adolescência na São Paulo do início do século XX. Com uma narrativa fluida e cheia de afeto, Zélia reconstrói a vida de sua família de imigrantes italianos com uma simplicidade que cativa, mesclando humor e nostalgia. O título, uma brincadeira irônica, reflete o espírito anarquista de seu pai e a gratidão por uma vida cheia de histórias, mesmo em meio às adversidades.

O tema central do livro é a experiência da imigração italiana e a formação de uma identidade cultural em um Brasil em transformação. Através dos olhos de uma jovem Zélia, a obra explora a adaptação de sua família ao novo país, os ideais anarquistas que guiavam seu pai, Ernesto Gattai, e a convivência em uma comunidade marcada por solidariedade e luta. Há também uma reflexão sutil sobre as desigualdades sociais e o papel das mulheres, personificado na força de sua mãe, Angelina, que equilibrava os sonhos revolucionários do marido com o cuidado do lar.

A trama é um passeio pelas memórias de Zélia no bairro do Paraíso, onde a família Gattai viveu na Alameda Santos. O livro narra episódios do cotidiano – como as travessuras com os irmãos, as histórias do cachorro Flox e do bode Bito, e as visitas do avô Nonno – entrelaçados com eventos históricos, como a Revolução de 1924, que sitiou São Paulo. A narrativa culmina com a demolição do casarão da família, um símbolo do fim de uma era. São capítulos curtos, quase crônicas, que capturam a essência de uma infância vibrante e cheia de personagens.

“Anarquistas, Graças a Deus” está ancorado na São Paulo das primeiras décadas do século XX, uma cidade em transição de vilarejo provinciano para metrópole. Era um período de intensa imigração italiana, com bairros como Brás e Bexiga pulsando com trabalhadores e ideais libertários. A obra reflete o auge do movimento anarquista no Brasil, influenciado por figuras como Giovanni Rossi, fundador da Colônia Cecília, da qual Ernesto Gattai foi parte. Esse pano de fundo político e social dá profundidade às histórias pessoais de Zélia, mostrando como o macro e o micro se entrelaçam.

Zélia Gattai (1916-2008) nasceu em São Paulo, filha de Ernesto, um anarquista italiano de Florença, e Angelina, de origem vêneta. Casada com Jorge Amado desde 1945, ela viveu por anos à sombra do marido escritor, mas encontrou sua voz com este livro, aos 63 anos. Sem formação acadêmica extensa, Zélia aprendeu a escrever com a vida, e sua estreia lhe rendeu o Prêmio Paulista de Revelação Literária de 1979. Sua trajetória como memorialista a levou à Academia Brasileira de Letras em 2001, consolidando-a como uma das grandes vozes femininas da literatura brasileira.

“Anarquistas, Graças a Deus” foi um sucesso estrondoso para uma estreante: vendeu milhares de cópias rapidamente e foi traduzido para vários idiomas, alcançando leitores em países como Itália e Portugal. A adaptação para uma minissérie da Rede Globo em 1984, dirigida por Walter Avancini, ampliou seu alcance, sendo exibida em cinco capítulos e mais tarde comercializada internacionalmente. Com 344 páginas na edição da Companhia das Letras, o livro segue como um clássico acessível, impresso sob demanda até hoje.

São Paulo é o coração pulsante da obra. Zélia descreve a Alameda Santos, paralela à Avenida Paulista, como um vilarejo de vizinhos amigos, com suas goiabeiras e saraus, contrastando com a cidade que crescia ao redor. Há menções ao Brás, Bexiga e à Várzea do Carmo, onde a família caçava, além da Revolução de 1924, quando São Paulo foi bombardeada e os Gattai acolheram refugiados em casa. Esses detalhes pintam uma metrópole em formação, ainda rural em suas bordas, mas já marcada pela diversidade e pelo progresso que engoliria o casarão da família.

Zélia só começou a escrever após Jorge Amado insistir, e o livro nasceu de anotações despretensiosas. A minissérie de 1984 foi gravada em Joanópolis, interior de São Paulo, recriando o clima da época. Outro fato interessante é a referência à Colônia Cecília, um experimento anarquista no Paraná que Ernesto Gattai integrou antes de se estabelecer em São Paulo – um sonho utópico que Zélia resgata com orgulho. A obra também antecipa o encontro com Jorge Amado, mencionado como um jovem escritor que cruza o caminho da família, um spoiler sutil de seu futuro. É um livro que mistura ternura e história, como um café com pão na chapa servido por uma nonna italiana.