Autor: Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno
Ano de lançamento: 1980
Produtor: Robinson Borba
Editora: Independente (lançamento original), relançado por Thanx God Records
Se você acha que a música brasileira dos anos 80 era só axé e sertanejo, prepare-se para conhecer “Clara Crocodilo”, o disco que caiu como um meteoro atonal no quintal da MPB. Lançado em 1980 por Arrigo Barnabé e sua trupe Sabor de Veneno, esse álbum é um coquetel molotov de serialismo, histórias em quadrinhos e um humor torto que deixa qualquer um com a pulga atrás da orelha. Gravado em São Paulo com a finesse de quem mixa punk com Stravinsky num liquidificador sem tampa, ele é o marco zero da Vanguarda Paulista – uma cena que riu na cara do comercial e disse: “Tonalidade? Não conheço essa moça!”
Um mergulho na marginalidade urbana com um toque de pesadelo psicodélico. “Clara Crocodilo” não é só um disco, é uma ópera-rock distópica sobre uma femme fatale crocodiliana que aterroriza a metrópole. As letras, cheias de sarcasmo e imagens bizarras, pintam um São Paulo sombrio, onde o caos social e a solidão dançam um tango desafinado. Arrigo usa o atonalismo como arma, jogando fora as melodias fofinhas da MPB para criar um som que é mais um soco no estômago do que um cafuné – perfeito pra quem acha que música boa precisa incomodar.
Resumir “Clara Crocodilo” é como tentar explicar um sonho esquisito: são oito faixas que contam a saga dessa criatura mítica e seus comparsas, entre assaltos, cigarros acesos e ameaças existenciais. Tem de tudo: a faixa-título é um épico de sete minutos que mistura narração radiofônica com dissonâncias de gelar a espinha, enquanto “Office-Boy” e “Diversões Eletrônicas” zoam a rotina alienante da cidade grande. É um passeio por um submundo sonoro onde o ouvinte é o “incauto” que acidentalmente colocou o disco na vitrola e agora não sabe se ri ou corre.
O contexto é o fim dos anos 70, com São Paulo fervendo de ideias e repressão. A ditadura militar ainda dava as cartas, mas a contracultura borbulhava nos becos e universidades. Arrigo, então um estudante de música na USP, pegou o tropicalismo de Caetano e Gil, deu um chute no tonalismo e abraçou o dodecafonismo como quem abraça um cacto – com paixão e um pouco de dor. O disco nasceu independente após a Polygram pular fora do projeto, e o lançamento na FAU-USP em 15 de novembro de 1980 foi quase um ato de guerrilha cultural. A censura só liberou as vendas no finzinho de dezembro, mas aí o monstro já tinha escapado da jaula.
Arrigo Barnabé, o cérebro por trás disso tudo, é um paranaense de Londrina que trocou a arquitetura pela música e nunca olhou pra trás. Nascido em 1951, ele cresceu ouvindo de tudo – de Bartók a gibi do Batman – e formou um círculo de amigos malucos que incluía Mário Lúcio Cortes e seu irmão Paulo Barnabé, futuros parceiros no crime sonoro. Chegando a São Paulo em 1970, ele mergulhou na ECA-USP e na cena underground, onde cozinhou “Clara Crocodilo” com a Banda Sabor de Veneno, uma trupe tão eclética quanto um ensaio de escola de samba sem partitura. O cara é um gênio excêntrico que a crítica ama, mas que o povão nunca soube cantarolar.
Nos números, “Clara Crocodilo” não foi um blockbuster – vendeu 4.500 cópias em seis meses, o que pra um disco independente e esquisito era quase um milagre. A crítica caiu de amores, chamando Arrigo de “o novo tropicalismo”, e em 2007 a Rolling Stone Brasil colocou o álbum na 51ª posição dos 100 maiores discos brasileiros. Traduzido pra fora do país e relançado em CD (1996 pela Polygram e 2000 pela Thanx God), ele virou cult, com fãs que o tratam como relíquia e detratores que dizem que é barulho pra intelectuais de óculos tortos. Mas quem liga pra números quando o impacto é eterno?
As principais faixas são um tour pela São Paulo dos marginalizados. “Clara Crocodilo” (com Mário Lúcio Cortes) abre com um narrador que te joga no 31 de dezembro de 1999, imaginando a protagonista assaltando bancos ou espreitando atrás da porta – puro caos paulistano em sete minutos de tensão atonal. “Office-Boy” é uma sátira afiada sobre o trabalhador invisível da metrópole, com arranjos que parecem um elevador quebrado no centro da cidade. “Diversões Eletrônicas” zoa a alienação urbana com sintetizadores tortos, como se fosse a trilha de um fliperama na Rua Augusta. São Paulo aqui é o playground de Clara, sujo e brilhante ao mesmo tempo.
O disco quase foi da Polygram, mas Arrigo brigou com a gravadora e bancou tudo sozinho – um punk de terno! A capa, desenhada por Luiz Gê, é um gibi psicodélico que resume o espírito da coisa. A faixa-título ganhou vida extra como ópera-rock em 1981 e curta-metragem no mesmo ano, enquanto em 1999 virou “A Saga de Clara Crocodilo”, um CD com novas aventuras da fera. E tem mais: o som é tão fora da curva que Tetê Espíndola e Itamar Assumpção, ícones da Vanguarda, aparecem na trupe, gritando e improvisando como se o mundo fosse acabar. É um clássico que ri da própria loucura e te convida pra dançar no abismo.
Lista de Músicas:
01. “Diversões Eletrônicas” – Arrigo Barnabé, Regina Porto
02. “Acapulco Drive-In” – Arrigo Barnabé, Paulo Barnabé, Otávio Fialho, Gilson Gibson
03. “Orgasmo Total” – Arrigo Barnabé
04. “Infortúnio” – Arrigo Barnabé
05. “Sabor de Veneno” – Arrigo Barnabé
06. “Office-Boy” – Arrigo Barnabé
07. “Clara Crocodilo” – Arrigo Barnabé, Mário Lúcio Cortes
08. “Instante” – Arrigo Barnabé
Comente!