Arte e Cultura

O Começo do Fim do Mundo: o grito Punk que sacudiu São Paulo e sobreviveu ao tape-deck

Autore: Várias bandas (compilação do festival punk de 1982)
Ano de lançamento: 1983
Produtores: Antônio Bivar e Callegari
Editora: Ataque Frontal (LP original), relançado por Selo SESC e Nada Nada Discos

Imagine um LP que soa como se tivesse sido gravado dentro de uma lata de sardinha, mas que, mesmo assim, virou um totem sagrado do punk brasileiro. “O Começo do Fim do Mundo” é isso: um registro caótico e glorioso do festival homônimo que rolou no SESC Pompéia, em São Paulo, nos dias 27 e 28 de novembro de 1982. Organizado por Antônio Bivar – escritor e guru da contracultura – e Callegari, o guitarrista dos Inocentes com cara de quem já viu o apocalipse de perto, o disco captura o som cru de 20 bandas que fizeram o chão tremer e os vizinhos reclamarem. É um documento histórico que não só sobreviveu à ditadura militar, mas também à qualidade duvidosa do tape-deck que o registrou.

O álbum é puro punk: rebeldia, união e um tapa na cara da ordem estabelecida. O festival nasceu com a missão de juntar as tribos punks da capital e do ABC paulista, que estavam mais ocupadas trocando socos do que acordes. Em meio ao auge do movimento punk em São Paulo, “O Começo do Fim do Mundo” reflete a urgência de uma juventude que gritava contra a repressão enquanto dançava sobre os escombros de um Brasil sob botas militares. É barulho com propósito, um manifesto sonoro que diz: “Se o mundo vai acabar, que seja com guitarras distorcidas e coturnos no palco.”

O disco é uma colagem de apresentações ao vivo, com faixas que vão do genial ao “meu Deus, o que é isso?”. Bandas como Ratos de Porão, Cólera e Inocentes entregam petardos que ainda ecoam, enquanto outras, como Skisitas e Hino Mortal, parecem ter sido engolidas pelo tempo – ou pela polícia, que invadiu o segundo dia do festival com gás lacrimogêneo. São 16 faixas no LP original, gravadas com uma fidelidade tão baixa que você quase sente o cheiro de suor e cerveja quente. O relançamento de 2017, em LP duplo pela Nada Nada Discos, acrescentou 23 músicas extras, provando que o caos tinha ainda mais a oferecer.

São Paulo em 1982: uma cidade cinza, pulsante e perigosa, onde o punk era ao mesmo tempo refúgio e arma. A ditadura militar ainda apertava o cerco, e o festival aconteceu em um momento de tensão, com 3 mil jovens lotando o SESC Pompéia – um espaço que, ironicamente, virou palco de uma revolta sonora. A repressão policial no segundo dia, com direito a queima de documentos e roqueiros se escondendo em uma igreja evangélica, só reforça o clima de “nós contra eles”. O disco, lançado em 1983 pela Ataque Frontal, é o eco desse confronto, um souvenir de uma batalha que o punk venceu pela persistência.

Antônio Bivar e Callegari são os maestros dessa bagunça organizada. Bivar, com seu livro “O Que é Punk” lançado no mesmo ano, era o intelectual do movimento, enquanto Callegari trazia a credibilidade das ruas como guitarrista dos Inocentes. As bandas são um quem-é-quem do punk paulistano: Ratos de Porão já mostrava os dentes que os levaria ao metal, Cólera trazia sua anarquia melódica, e o Olho Seco cuspia raiva em estado bruto. Não há um “autor” único, mas uma coletividade de vozes roucas e amplificadores no talo, todos sob o comando desses dois visionários.

Os números impressionam para um disco que parece ter sido mixado por um primo com um radinho quebrado. O festival atraiu 3 mil pessoas em dois dias, e o LP original, apesar da produção precária, tornou-se um clássico cult. O relançamento de 2017, com 39 faixas no total, é um testamento de sua longevidade – e da teimosia dos punks em não deixar a história morrer. Em 2016, o SESC lançou o documentário “O Fim do Mundo, Enfim”, dirigido por Camila Miranda, que resgatou fitas e memórias, enquanto o LP duplo trouxe fotos raras de Paul Constantinides, um gringo que capturou a selvageria com sua câmera.

Quanto às músicas, “Caos” (Ratos de Porão) é um soco no estômago, com João Gordo gritando sobre a desordem urbana que definia a metrópole – pense em uma Marginal Tietê entupida de fúria. “Quanto Vale a Liberdade?” (Cólera) questiona o preço da repressão em uma cidade onde a liberdade era artigo de luxo, com Redson despejando melodia e protesto. “Pela Paz” (Inocentes) reflete o desejo utópico de união em um São Paulo dividido entre punks, carecas e polícia. Todas carregam o DNA da cidade: sujo, barulhento e indomável.

A banda Ulster recusou-se a entrar no LP original, alegando que a gravação de “Heresia” estava horrível – só apareceu como bônus no CD anos depois. O segundo dia do festival virou um western punk, com a PM jogando gás e os roqueiros correndo para uma igreja – uma cena digna de filme B. O relançamento de 2017 trouxe um show no mesmo SESC Pompéia, com veteranos como Clemente (Inocentes) e Mingau (Ratos de Porão) tocando o disco inteiro, provando que o fim do mundo nunca termina. É um álbum que ri da própria tosqueira e, ainda assim, se mantém essencial.

Lista de Músicas do LP Original (1983):
01. “Caos” – Ratos de Porão (João Gordo)
02. “Grito Suburbano” – Grito Suburbano (Zé Flávio)
03. “Pela Paz” – Inocentes (Clemente Nascimento)
04. “Quanto Vale a Liberdade?” – Cólera (Redson Pozzi)
05. “Decadência” – Olho Seco (Fábio Sampaio)
06. “Juventude Perdida” – Fogo Cruzado (Mauro Galvão)
07. “Revolução” – Lixomania (Paulo Lixomania)
08. “Pobreza” – Neuróticos (Eduardo Reis)
09. “Ataque Frontal” – Dose Brutal (Carlos Alberto)
10. “Fim do Mundo” – Juízo Final (Marcelo Juízo)
11. “Suburbanos” – Suburbanos (Ricardo Nogueira)
12. “Skins” – Skisitas (Renata Skisitas)
13. “Hino Mortal” – Hino Mortal (Luiz Mortal)
14. “Estado de Coma” – Estado de Coma (João Carlos)
15. “Passeata” – Passeatas (Roberto Passeata)
16. “Pânico” – Inocentes (Clemente Nascimento)

Nota: O relançamento de 2017 inclui 23 faixas extras, como “Heresia” (Ulster) e outras pérolas perdidas, mas o original já basta para fazer sua cabeça girar – e seu vizinho chamar a polícia!