Arte e Cultura

Quarto de Despejo: a voz crua da favela que ecoou pelo mundo

 

Autora: Carolina Maria de Jesus
Ano de lançamento: 1960
Editora: Francisco Alves

“Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” é uma obra autobiográfica escrita por Carolina Maria de Jesus, publicada em agosto de 1960 pela editora Francisco Alves. O livro, composto por trechos de diários que a autora escreveu entre 1955 e 1960, oferece um relato visceral da vida na favela do Canindé, em São Paulo. Descoberto pelo jornalista Audálio Dantas, que visitou a comunidade em 1958 para uma reportagem, o texto foi editado sem alterar sua essência, preservando a linguagem simples e direta de Carolina. O título, sugerido pela própria autora, reflete sua visão da favela como o “quarto de despejo” da cidade, um lugar onde os pobres são descartados como “trastes velhos”.

O tema central da obra é a denúncia da desigualdade social, da fome e da exclusão, narrados a partir da perspectiva de uma mulher negra, mãe solo e catadora de papel. Carolina expõe a luta diária pela sobrevivência em um ambiente marcado pela miséria, onde a fome é uma presença constante – descrita por ela como tendo a cor amarela. O livro transcende a mera crônica pessoal ao se tornar um grito de resistência e um documento histórico, revelando as condições de vida nas periferias urbanas brasileiras em meados do século XX, um período de modernização que contrastava com o abandono das favelas.

O livro gira em torno das anotações de Carolina sobre seu cotidiano na favela do Canindé. Ela descreve a busca por comida para seus três filhos – João José, José Carlos e Vera Eunice –, as interações com vizinhos, a coleta de materiais recicláveis e os desafios de uma existência à margem da sociedade. Passagens como a troca de garrafas por pão ou o remendo de sapatos achados no lixo ilustram a precariedade de sua vida. O sucesso da obra permitiu que ela deixasse a favela e se mudasse para Santana, mas sua ascensão foi seguida por um retorno à pobreza anos depois.

O contexto de “Quarto de Despejo” está intrinsecamente ligado à urbanização de São Paulo nas décadas de 1940 e 1950. Com a construção de edifícios e a expulsão dos pobres das áreas centrais, as favelas começaram a se formar, como a do Canindé, às margens do rio Tietê. A obra surge em um momento de efervescência cultural e política no Brasil, antes do golpe militar de 1964, quando vozes marginais ainda encontravam algum espaço. A publicação coincidiu com o interesse crescente por narrativas sociais, o que explica sua rápida aceitação e impacto.

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, em Sacramento, Minas Gerais, filha de pais analfabetos e neta de escravizados. Com apenas dois anos de estudo formal, aprendeu a ler e escrever, desenvolvendo um amor pela escrita que a levou a registrar sua vida em cadernos encontrados no lixo. Mudou-se para São Paulo em 1947, onde trabalhou como empregada doméstica e catadora, criando sozinha seus filhos. Após o sucesso de “Quarto de Despejo”, lançou outros livros, como “Casa de Alvenaria” (1961), mas morreu em 13 de fevereiro de 1977, na pobreza, em Parelheiros, outro bairro periférico de São Paulo.

Números impressionam: a primeira edição de “Quarto de Despejo” vendeu 10 mil cópias em três dias em São Paulo, alcançando 100 mil exemplares no primeiro ano – um feito raro para a época, quando uma tiragem de 4 mil já era considerada bem-sucedida. Traduzido para mais de 13 idiomas e distribuído em 40 países, o livro tornou Carolina uma figura internacional, embora seu sucesso tenha sido efêmero no Brasil. A obra também inspirou adaptações, como um álbum musical gravado por ela em 1961 e peças teatrais.

São Paulo é mais do que o cenário do livro; é um personagem essencial. A favela do Canindé, hoje extinta para dar lugar à Marginal Tietê, é retratada com detalhes que mostram o contraste entre a modernidade da metrópole e o abandono de suas periferias. Carolina menciona ruas, lixões e a rotina urbana, como em trechos onde descreve a coleta de papel ou a vista do rio Tietê. Sua mudança para Santana, na zona norte, simboliza uma tentativa de escapar desse “quarto de despejo”, mas a discriminação que enfrentou lá reflete a exclusão persistente na cidade.

O manuscrito original, reeditado em 1999, revelou uma Carolina mais poética do que a versão editada por Dantas, dissipando dúvidas sobre sua autoria. Outra nota é o impacto social da obra: a repercussão levou à desocupação da favela do Canindé em 1961. Apesar da fama, Carolina foi esquecida pelo público e pela mídia após os anos 1960, morrendo na obscuridade. Voltou a ser destaque postumamente, graças aos movimentos sociais e de afirmação da raça negra, ocorridos a partir dos anos 90. Em 2019, o Google homenageou seu 105º aniversário com um Doodle, e sua obra segue sendo estudada como um marco da literatura periférica e afro-brasileira, ainda relevante para os desafios atuais das grandes cidades.