Arte e Cultura

Durval Discos: Nostalgia, Mudança e os Lados da Vida

Ano de lançamento: 2002
Elenco: Ary França, Etty Fraser, Letícia Sabatella, Isabela Guasco, Marisa Orth, André Abujamra, Rita Lee
Produtor: Sara Silveira, Maria Ionescu, Cao Albuquerque
Diretor: Anna Muylaert
Produtora: Dezenove Som e Imagem
País de origem: Brasil

“Durval Discos” é um filme brasileiro lançado em 2002 que marca a estreia de Anna Muylaert como diretora de longas-metragens. Ambientado em 1995, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o filme acompanha Durval (Ary França), um vendedor de discos de vinil que resiste à ascensão dos CDs, vivendo com sua mãe, Carmita (Etty Fraser), nos fundos de sua loja. A trama começa como uma comédia leve, mas toma rumos sombrios quando uma empregada contratada, Célia (Letícia Sabatella), desaparece, deixando para trás uma menina, Kiki (Isabela Guasco), que logo se revela parte de um segredo perturbador. Vencedor de sete Kikitos no Festival de Gramado, incluindo Melhor Filme, o longa se destaca por sua originalidade e pela habilidade de mesclar humor e drama.

O tema central de “Durval Discos” é a resistência às mudanças e a nostalgia por um passado que se esvai. Durval representa uma geração que se agarra aos vinis em um mundo que abraça a modernidade dos CDs, simbolizando uma luta contra o inevitável avanço do tempo e da tecnologia. A relação com sua mãe, marcada por uma dependência mútua, reforça essa ideia de estagnação, enquanto a chegada de Kiki funciona como um catalisador que força ambos a confrontar a realidade. O filme utiliza a metáfora dos “lados A e B” de um disco de vinil para estruturar sua narrativa: o lado A é leve e nostálgico, enquanto o B mergulha em tensão e insanidade.

A trama começa com Durval e Carmita levando uma vida monótona até decidirem contratar uma empregada por um salário irrisório. Célia aceita o trabalho, mas logo abandona Kiki com um bilhete, prometendo voltar em poucos dias. A presença da menina traz alegria inicial, mas a situação se complica quando um telejornal revela que Kiki foi sequestrada e Célia está envolvida no crime. A partir daí, a história se transforma: Carmita desenvolve um apego doentio pela criança, e Durval, preso entre a loucura da mãe e sua própria passividade, enfrenta o colapso de sua rotina. O desfecho, ambíguo e impactante, sugere uma libertação simbólica para Durval.

O filme revela uma direção segura de Anna Muylaert, que equilibra comédia e drama com uma estética simples, mas eficaz. A câmera em movimento na abertura, percorrendo Pinheiros, introduz o universo de Durval de forma dinâmica, enquanto a trilha sonora, dividida entre clássicos da MPB dos anos 1970 (como Novos Baianos e Luiz Melodia) e a composição tensa de André Abujamra, sublinha a dualidade da narrativa. As atuações são um ponto alto: Ary França traz uma energia nervosa ao protagonista, Etty Fraser constrói uma Carmita complexa e Isabela Guasco entrega uma Kiki doce e enigmática, essencial para o tom do filme.

“Durval Discos” foi inspirado em lojas reais de Pinheiros, como a Edgar Discos, onde o dono resistia aos CDs, e a Eric Discos, que influenciou a ambientação. A casa usada como locação, na Rua Alves Guimarães, foi demolida logo após as filmagens para dar lugar a um prédio comercial, simbolizando as transformações abordadas no filme. Outro fato interessante é que André Abujamra, responsável pela trilha, chegou a ser cotado para o papel de Durval, mas acabou fazendo uma participação cômica como Fat Marley, além de lançar um disco com o nome do personagem.

A produção enfrentou desafios de orçamento, mas isso não comprometeu sua qualidade. Filmado com recursos modestos e apoio de editais públicos, o longa levou quatro anos para ser concluído, refletindo o empenho de Muylaert em criar uma obra autoral. A escolha de ambientar a história em 1995, ano em que a indústria fonográfica brasileira abandonou os vinis, adiciona uma camada histórica ao enredo, conectando a narrativa pessoal de Durval às mudanças culturais mais amplas da época.

O filme recebeu aclamação crítica e popular, especialmente após sua vitória em Gramado, onde conquistou júri oficial, popular e da crítica. Sua estrutura em dois “lados” foi elogiada por refletir a dualidade da vida, mas alguns apontam que o final aberto pode frustrar quem busca resoluções claras. Ainda assim, “Durval Discos” é reconhecido como um marco no cinema brasileiro dos anos 2000, oferecendo uma visão singular sobre a transição entre eras e as tensões familiares, tudo embalado por uma trilha sonora memorável.

“Durval Discos” é uma obra que transcende sua simplicidade aparente, convidando o espectador a refletir sobre apego, perda e adaptação. Sua volta aos cinemas em 2023, em versão remasterizada em 4K pelo projeto Sessão Vitrine Petrobras, reafirma sua relevância e atemporalidade. Com humor ácido, personagens cativantes e uma narrativa que surpreende, o filme de Anna Muylaert permanece uma joia do cinema nacional, prova de que histórias locais podem ressoar universalmente.